Crónica de Frei Bento Domingues
Por se tratar de um assunto imediato, não resisto a publicar este artigo que, embora um pouco longo, é muito interessante!
"Carnaval em Fátima
Frei Bento Domingues, o.p.
1.Dois mil anos de cristianismo e nem um único documento pontifício sobre o sentido do humor"! E depois, ainda se admiram que os católicos cheguem ao céu cada vez menos preparados para cantar e dançar. Se tudo o que dá prazer faz mal ou é pecado, o pior inimigo da religião é o aborrecimento. Como observa o divertidíssimo teólogo espanhol da banda desenhada, as próprias ordens e congregações religiosas têm cada vez mais ordens e menos religiosas (1).Não é um destino. Uma apreciável quantidade de frades e freiras, mas sobretudo freiras, inauguraram ontem, em Fátima, cortejos sedentários de Carnaval.A jovialidade dos cenários, sobre "encantos e desencantos na Igreja e na vida consagrada", oscila entre o ligeiro e o grave. O ser humano é um animal do advento, procurando, cada vez mais, aligeirar a vida. Velhas e novas dependências que o escravizam exigem quaresmas de libertação. Numa civilização que derrama, continuamente, substâncias altamente tóxicas, os êxtases do Carnaval são cinzentos. Uma quarentena de meditação e de exercícios espirituais desintoxicantes são indispensáveis à recuperação do bom humor. René Char disse algo parecido com isto: se o homem, de tempos a tempos, não fechasse os olhos, em breve não teria mais nada que merecesse ser contemplado.2. Mediante diversos carismas, a vida religiosa surge na Igreja para que ela não se perca de Jesus Cristo nem vegete alienada, longe das alegrias e dores de um mundo globalizado para o melhor e para o pior.A grande novidade do percurso de Jesus é um desafio eterno: fazer família com quem não é da família, reunindo "todos os filhos de Deus dispersos". É por isso que, na Eucaristia, rezamos sempre o Pai-Nosso. Não é pelo culto das palavras. É para que não morra a utopia dos Actos dos Apóstolos: "Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles." Ao longo da história, os movimentos radicais de vida religiosa nunca se contentaram com a célebre homilia do pároco abusado: "Irmãos, sempre irmãos, mas cada um vai comer a sua casa..."Um historiador do nascimento do monaquismo cristão, A.-J. Festugière, retratou bem a eclosão do protesto inerente à vida religiosa: "Quando o universo passou a ser oficialmente cristão, o paganismo passou a ser apenas tolerado e nos finais do século IV nem isso. Quando o imperador passou a ser oficialmente cristão, acabaram não só as perseguições, mas também os antigos inconvenientes de ser cristão e reuniram-se todas as vantagens. Embora os cargos, títulos, poderes e honras não lhes ficassem reservados, é sobre eles que, daí em diante, se vão amontoar. Em Constantinopla, há uma corte cristã com uma infinidade de dignitários e aduladores. Nesse preciso momento, para o cristão sério, para aquele que toma as verdades da fé à letra, levantou-se uma questão decisiva: num mundo assim poder-se-á seguir Jesus, levar a Sua cruz? Muitos responderam negativamente e partiram para o deserto." (2)Não cabe, neste espaço, mostrar os surtos de rebeldia evangélica ao longo de dois mil anos. Destaco, numa outra direcção, as observações, bem-humoradas, do romancista Hugo Claus sobre as virtudes católicas do cristianismo impuro: "Tem o génio da diversidade na unidade. Reconhece uma multiplicidade de vocações, que vão desde o eunuco do claustro ao pai de família numerosa. Permite celebrar os santos mistérios sobre uma mesa de cozinha ou detrás da iconostase. Acolhe todas as formas de governo nas suas ordens religiosas: a monarquia complacente dos beneditinos, a democracia exagerada dos dominicanos, a anarquia evangélica dos franciscanos, a ditadura temperada pela desobediência dos padres jesuítas."Agostinho da Silva compreendeu bem a antropologia libertária dos votos religiosos: pela pobreza, não possuo; pela castidade, não sou possuído por outro; pela obediência, não sou possuído por mim próprio, pelo meu egoísmo. O que possuímos é que nos possui. A publicidade vive de nos tornar infelizes, se não lhe obedecermos. A vida religiosa devia provar que pouca coisa basta à vida feliz, não aniquilando, mas convertendo os desejos. Os votos só valem, se forem instrumentos para sair das nossas prisões e para seguir Cristo através do seu próprio caminho na companhia dos pobres, dos doentes, dos privados de afectos, dos marginalizados. Como observa J. L. Cortes, "há eunucos que se fazem eunucos pelo reino dos céus... E outros que se fazem eunucos pelo reino dos eunucos".3. Não há bela sem senão. Este "senão" é o farisaísmo que espreita todas religiões: a perfeição das aparências. Vê o argueiro, mas não vê a trave; vê o pecado dos outros, mas não vê o próprio e, sobretudo, esquece que o ser humano não é para as instituições, mas as instituições para o ser humano. Como disse Jesus, "o sábado é para o homem e não o homem para o sábado".Neste Domingo Gordo, os textos apresentam o protesto dos fariseus contra a festa de Jesus com os seus discípulos, contra o "carnaval", contra a alegria, em favor do jejum.Por resistência à novidade, teimam em pôr remendo novo em pano velho, em meter vinho novo em odres velhos. Preferem envenenar a vida a deitar fora o que estraga a vida. Sacralizam o que não é sagrado e destroem o essencial: o dom mútuo da alegria.Em nome da divina aliança, tornamos Deus responsável pelas coisas que nos amarram. A luta de S. Paulo contra a lei, contra a letra que mata, é um combate contra a idolatria. Colocamos na boca de Deus regras e palavras inventadas por nós. Também a Igreja, quando perde o sal do Espírito Santo - humor e rebeldia -, quando não puxa pelo que há de melhor no ser humano, torna-se aborrecida. Perde a graça.O programa do Carnaval de Fátima destina-se a redescobrir o "encanto da vida consagrada" que não se pode encontrar no Museu de Cera. Sem a consagração à descoberta das alegrias breves na construção do quotidiano, esquecemos que Deus tanto escreve direito por linhas tortas como torto por linhas direitas."
"Carnaval em Fátima
Frei Bento Domingues, o.p.
1.Dois mil anos de cristianismo e nem um único documento pontifício sobre o sentido do humor"! E depois, ainda se admiram que os católicos cheguem ao céu cada vez menos preparados para cantar e dançar. Se tudo o que dá prazer faz mal ou é pecado, o pior inimigo da religião é o aborrecimento. Como observa o divertidíssimo teólogo espanhol da banda desenhada, as próprias ordens e congregações religiosas têm cada vez mais ordens e menos religiosas (1).Não é um destino. Uma apreciável quantidade de frades e freiras, mas sobretudo freiras, inauguraram ontem, em Fátima, cortejos sedentários de Carnaval.A jovialidade dos cenários, sobre "encantos e desencantos na Igreja e na vida consagrada", oscila entre o ligeiro e o grave. O ser humano é um animal do advento, procurando, cada vez mais, aligeirar a vida. Velhas e novas dependências que o escravizam exigem quaresmas de libertação. Numa civilização que derrama, continuamente, substâncias altamente tóxicas, os êxtases do Carnaval são cinzentos. Uma quarentena de meditação e de exercícios espirituais desintoxicantes são indispensáveis à recuperação do bom humor. René Char disse algo parecido com isto: se o homem, de tempos a tempos, não fechasse os olhos, em breve não teria mais nada que merecesse ser contemplado.2. Mediante diversos carismas, a vida religiosa surge na Igreja para que ela não se perca de Jesus Cristo nem vegete alienada, longe das alegrias e dores de um mundo globalizado para o melhor e para o pior.A grande novidade do percurso de Jesus é um desafio eterno: fazer família com quem não é da família, reunindo "todos os filhos de Deus dispersos". É por isso que, na Eucaristia, rezamos sempre o Pai-Nosso. Não é pelo culto das palavras. É para que não morra a utopia dos Actos dos Apóstolos: "Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles." Ao longo da história, os movimentos radicais de vida religiosa nunca se contentaram com a célebre homilia do pároco abusado: "Irmãos, sempre irmãos, mas cada um vai comer a sua casa..."Um historiador do nascimento do monaquismo cristão, A.-J. Festugière, retratou bem a eclosão do protesto inerente à vida religiosa: "Quando o universo passou a ser oficialmente cristão, o paganismo passou a ser apenas tolerado e nos finais do século IV nem isso. Quando o imperador passou a ser oficialmente cristão, acabaram não só as perseguições, mas também os antigos inconvenientes de ser cristão e reuniram-se todas as vantagens. Embora os cargos, títulos, poderes e honras não lhes ficassem reservados, é sobre eles que, daí em diante, se vão amontoar. Em Constantinopla, há uma corte cristã com uma infinidade de dignitários e aduladores. Nesse preciso momento, para o cristão sério, para aquele que toma as verdades da fé à letra, levantou-se uma questão decisiva: num mundo assim poder-se-á seguir Jesus, levar a Sua cruz? Muitos responderam negativamente e partiram para o deserto." (2)Não cabe, neste espaço, mostrar os surtos de rebeldia evangélica ao longo de dois mil anos. Destaco, numa outra direcção, as observações, bem-humoradas, do romancista Hugo Claus sobre as virtudes católicas do cristianismo impuro: "Tem o génio da diversidade na unidade. Reconhece uma multiplicidade de vocações, que vão desde o eunuco do claustro ao pai de família numerosa. Permite celebrar os santos mistérios sobre uma mesa de cozinha ou detrás da iconostase. Acolhe todas as formas de governo nas suas ordens religiosas: a monarquia complacente dos beneditinos, a democracia exagerada dos dominicanos, a anarquia evangélica dos franciscanos, a ditadura temperada pela desobediência dos padres jesuítas."Agostinho da Silva compreendeu bem a antropologia libertária dos votos religiosos: pela pobreza, não possuo; pela castidade, não sou possuído por outro; pela obediência, não sou possuído por mim próprio, pelo meu egoísmo. O que possuímos é que nos possui. A publicidade vive de nos tornar infelizes, se não lhe obedecermos. A vida religiosa devia provar que pouca coisa basta à vida feliz, não aniquilando, mas convertendo os desejos. Os votos só valem, se forem instrumentos para sair das nossas prisões e para seguir Cristo através do seu próprio caminho na companhia dos pobres, dos doentes, dos privados de afectos, dos marginalizados. Como observa J. L. Cortes, "há eunucos que se fazem eunucos pelo reino dos céus... E outros que se fazem eunucos pelo reino dos eunucos".3. Não há bela sem senão. Este "senão" é o farisaísmo que espreita todas religiões: a perfeição das aparências. Vê o argueiro, mas não vê a trave; vê o pecado dos outros, mas não vê o próprio e, sobretudo, esquece que o ser humano não é para as instituições, mas as instituições para o ser humano. Como disse Jesus, "o sábado é para o homem e não o homem para o sábado".Neste Domingo Gordo, os textos apresentam o protesto dos fariseus contra a festa de Jesus com os seus discípulos, contra o "carnaval", contra a alegria, em favor do jejum.Por resistência à novidade, teimam em pôr remendo novo em pano velho, em meter vinho novo em odres velhos. Preferem envenenar a vida a deitar fora o que estraga a vida. Sacralizam o que não é sagrado e destroem o essencial: o dom mútuo da alegria.Em nome da divina aliança, tornamos Deus responsável pelas coisas que nos amarram. A luta de S. Paulo contra a lei, contra a letra que mata, é um combate contra a idolatria. Colocamos na boca de Deus regras e palavras inventadas por nós. Também a Igreja, quando perde o sal do Espírito Santo - humor e rebeldia -, quando não puxa pelo que há de melhor no ser humano, torna-se aborrecida. Perde a graça.O programa do Carnaval de Fátima destina-se a redescobrir o "encanto da vida consagrada" que não se pode encontrar no Museu de Cera. Sem a consagração à descoberta das alegrias breves na construção do quotidiano, esquecemos que Deus tanto escreve direito por linhas tortas como torto por linhas direitas."
1 Comentários:
Às 2:49 PM , Anônimo disse...
Obrigada por ter postdo este artigo. Gostei muito.
Beijo,
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