A TERRA É UM SÓ PAÍS

Bem aventurado é o lugar, a casa e o coração e bem aventurado o refúgio, a caverna ou o vale, a terra e o mar, o prado e a ilha, onde se haja feito menção de Deus e celebrado o Seu louvor. -----------------------Bahá'u'lláh ---------------------

quarta-feira, março 19, 2008

Os filhos do último(mais recente) Profeta

Reportagem de Mário Robalo (texto) e Tiago Miranda (fotografias)

Seis milhões de bahá’ís em todo o mundo celebram, na próxima sexta-feira, o Ano Novo. Afirmando-se o «manifestante de Deus», substituindo todos os anteriores, o persa Bahá'u'lláh profetizou, no século XIX, a instauração de um governo mundial para todos povos e a união de todas as fés. Em Portugal, existem nove mil fiéis.

Os miúdos fixam-se no olhar de Neda que lhes fala com uma ternura cativante: «Porque dizemos 'bom-dia' aos nossos pais, pela manhã, quando não sabemos ainda o que vai acontecer?» A pergunta provoca um coro de desconcertantes respostas. Mas Núria, apoiando o rosto moreno entre as mãos, coloca a sua questão, quase excessiva para os seus dez anos: «É porque queremos que os outros também estejam felizes...» Neda agarra a ideia, dando-lhe coerência: «Pois... é como se alguém estivesse a tossir por cima de vocês, ficariam constipados. O mesmo se passa quando olhamos a vida de forma positiva. Essa nossa alegria passa para os outros, é contagiante.»

Aos sábados, a iraniana Neda Bakhshandegi faz, com o marido e as três filhas, o percurso entre Évora e Lisboa. Não apenas para animar um grupo de crianças no Centro Nacional Bahá'í, «mas também para que a família não perca a relação com a comunidade», diz enquanto agasalha Sama Isabel, a filha mais nova, de 8 meses, para regressarem a casa numa tarde cinzenta e húmida. Esta mulher, que herdou do pai o gosto pela arquitectura, teve de fugir da sua Teerão natal quando tinha 12 anos, juntamente com os pais e um irmão, em Maio de 1978, um ano antes da revolução do ayatolah Khomeni. «Foi a instituição islâmica que criou o mal-estar», acusa ao evocar um ambiente depressivo que então já se vivia, com pessoas a anotarem as matrículas dos carros de quem os visitava. Os diferentes regimes iranianos desencadearam uma feroz perseguição contra os crentes bahá’ís, que agora entram no ano 164. Em 1844, Bahá'u'lláh proclama-se o profeta anunciado pelas fés judaica, cristã e muçulmana. Desde então, o número de fieis condenados à morte já ultrapassou os 20 mil. O clero islâmico considera-os heréticos. Depois da proclamação da República islâmica do Irão, os funcionários públicos bahai foram despedidos e mais de 200 execuções foram confirmadas pela ONU e a União Europeia (UE), que por diversas vezes condenaram a situação de prisões arbitrárias e desaparecimentos. A última condenação da UE foi em Fevereiro, lamentando «a expulsão de estudantes de liceus e universidades». Após a entrada de Khomeni, mais de 700 mil bahá’ís viram-se forçados a abandonar o país. Portugal acolhe uma centena.

Neda e a família acabaram por chegar a Nova Jersey (EUA) com visto de refugiados. Em Israel, durante um trabalho voluntário na sede da sua religião, conheceu Shakib Shahidian, um iraniano refugiado com a família em Portugal desde os 10 anos. Agora Neda dedica o seu tempo a suscitar vontades para acções cívicas, como a realização de concertos a favor de uma associação de pais de crianças deficientes ou a limpeza de uma barragem de abastecimento à cidade de Évora com crianças de escolas.

«A fé bahá'í é uma ferramenta que nos permite participar, de modo responsável, na construção de uma cultura de respeito por toda a humanidade e pela Natureza», reconhece Shakib. E este professor de Engenharia Agrícola na Universidade de Évora recupera as profecias de Bahá'u'lláh sobre a «nova civilização mundial» que será sustentada por uma federação governativa universal: eliminação da pobreza, garantia de cuidados de saúde e de ensino para todos, criação de uma língua universal, reconhecimento da harmonia da religião com a razão e o conhecimento científico, e igualdade entre mulher e homem.

A chegada a Portugal em 1976, «causou uma sensação de alívio para a família». Os pais de Shakib, médicos, eram ameaçados constantemente, apesar de prestarem serviço em pequenas aldeias no sul do Irão. «O meu pai chegou a receber um 'recado' com uma faca desenhada. Por isso, «viver em Vila Nova de Gaia com uma única panela em casa, que servia para aquecer a água do banho e fazer comida, não significou qualquer incómodo». Até ir para Évora fazer o curso, os pais sobreviveram a vender flores e plantas. Demorou sete anos até que a mãe conseguisse um lugar no Hospital de Peso da Régua. Em Angola, onde trabalhou numa empresa agrária, Shakib voltou a experimentar o ambiente de medo que experimentara na sua terra. «Quando cheguei a Luanda, os bahá'ís ainda tinham de esconder os livros sob o chão das casas»

Quem nunca teve de suportar a violência da perseguição religiosa foi Margarida e João Ganso, treinador do atleta Nelson Évora, também bahá’í. Ele e a mulher conheceram a fé depois de Abril de 1974 – até àquela data a polícia política por diversas vezes invadiu as reuniões dos crentes bahá’ís. Nascidos em famílias católicas, o seu abandono da Igreja «não resultou de nenhuma atitude de rebeldia», confessa Margarida, para quem «a opção pela fé bahá’í significou um passo em frente», devolvendo-lhe outra dimensão das religiões. «Na Igreja Católica, a certeza da fé apenas reside na sua doutrina. Agora tenho a noção de que existe algo de válido noutras religiões...» A ideia desta advogada é interrompida pelo seu filho David «apenas» quer acrescentar: «Nunca tentei mostrar a um amigo que outra religião está errada. Ela está correcta, mas incompleta, porque Deus vai-se revelando progressivamente.» Os ensinamentos bahá’ís sustentam que cada «manifestante de Deus» - Krishna, Zoroastro, Abraão, Moisés, Buda, Jesus e Maomé - revelou partes do plano divino para a Humanidade. Bahá'u'lláh trouxe «a mensagem da unidade», que se concretizará na «cidadania mundial». Foi esta convicção que levou David, engenheiro civil, 24 anos, a integrar um grupo de dança teatral internacional bahá’í, com jovens de 10 nacionalidades diferentes.

Durante um ano percorreram um sem-número de países, «transmitindo mensagens de confiança na Humanidade». O pai de David recorda entretanto que, antes da conversão, o casal procurou respostas em outras Igrejas cristãs. João Ganso sublinha que os «benefícios» da sua nova fé se revelaram a nível do relacionamento humano: «O ambiente na família melhorou significativamente. Oramos juntos, quando temos dificuldades. E eu que vivi em Angola trazia uma ponta de racismo. Agora estou inserido num grupo de pessoas africanas que frequentam a nossa casa.»

A casa de Maryam Sanai, na Praia da Rocha (Portimão), também está disponível todas as sextas-feiras para acolher um grupo de cerca de 20 pessoas. Reúnem-se para dialogar sobre temas tão diversos como «as mulheres lideres no mundo» ou «a relação de afecto entre pais e filhos». Um dia, numa acção da fé bahá’í, esta iraniana ouviu alguém sustentar que o desenvolvimento humano precisa de nutrição. «Foi como um clique a despertar-me para uma acção concreta». A partir de então, sempre que surge a oportunidade, «particularmente junto de pais com filhos ainda pequenos», Maryam integra na conversa «a necessidade de desenvolvermos virtudes que alimentam o nosso interior e as relações humanas». Não se trata de proselitismo camuflado, garante. Até porque a sua fé não lho permite. Ela própria tem experiência de que a religião não se impõe: «É uma busca individual, que se cultiva naturalmente, mas que primeiro passa por uma decisão íntima.»

Quando chegou a Portugal, em 1980, com o marido, Siavash Sanai e a filha Tina, então com três anos, Maryam trazia como currículo a sua carreira de jornalista na televisão estatal do Irão. Por causa da sua convicção religiosa foi, primeiro «desterrada para a biblioteca» e, depois, despedida. Oito anos antes tinha casado com um arquitecto, em cuja família diversos membros foram presos ou executados por confessarem Bahá'u'lláh.

Ao chegar a Portimão, Siavash ainda pensou poder ali exercer a sua profissão. «Um engano». Uma empresa de construção quis aproveitar-se da sua formação. Como não podia assinar projectos, «pagavam um ordenado tão pequeno, 33 contos (hoje 165 euros), que quase não dava para pagar os 28 (140 euros) da renda da casa». A casa onde agora recebem as pessoas que aderem à iniciativa de Maryam foi projectada por ele. E o negócio de peles e malas garante-lhes a sobrevivência. Inicialmente aventuraram-se a tomar conta de uma mercearia. «Um atrevimento. Ainda não falávamos português», lembra Siavash, interrompido pela mulher, para recordar que «eram os clientes quem nos ensinava o nome dos produtos» Mas não bastava a simpatia da clientela.

O negócio era fraco, e, entretanto, em 1985, nascera-lhe um rapaz, Sahba. «Chegámos a não ter dinheiro para levar os filhos ao médico», diz Maryam, concluindo com satisfação: «Mas tudo se conseguiu». O filho está a terminar o curso de engenharia em Lisboa, onde participa na actividade da comunidade. A filha, Tina, exerce medicina em Beja. E no quotidiano de tensão rodeado de problemas humanos, esta médica diz sustentar-se no lema bahá’í: «Sejam actos e não palavras o vosso adorno».

Todos os membros da família Sanai estão naturalizados portugueses, situação que não escapou à vigilância do governo islâmico de Teerão. Através de um «comissário», fez saber que a família não deve voltar à pátria. Siavash retribui: «no meu país nasci como um estrangeiro, em Portugal sou da casa. Aqui a religião nunca foi um perigo nem um obstáculo.»

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A «GLÓRIA DE DEUS»

Bahá'u'lláh, que significa «glória de Deus», nasceu na Pérsia em 1817, com o nome de Mirzá Husayn-Al . O governo do seu país e as autoridades islâmicas não toleraram que ele se tivesse anunciado como o «manifestante de Deus» e «o prometido» - o último profeta de todas as religiões do passado. Acabaram por lhe decretar o exílio e sucessivas detenções.

Faleceu a 29 de Maio de 1892, em Akka (Israel) onde se encontra sepultado. As suas escrituras são consideradas revelações divinas para os seis milhões de crentes dispersos por mais de 200 países.

A fé bahá’í fundamenta-se na necessidade de «regenerar a Humanidade» com vista à formação de um governo único para todas as nações.

Os bahá’ís não têm clero nem culto. O casamento é uma instituição e o divórcio é tolerado. O álcool e as drogas estão proibidas. Também lhes está vedada a participação na política partidária bem como cargos de governação.

Os lideres locais e nacionais são eleitos, a exemplo do seu órgão máximo, a Casa Universal de Justiça, em Israel. A primeira notícia sobre a fé bahá’í é dada em 1926, durante uma conferência no Clube Rotário, em Lisboa. Antes, Eça de Queiroz já se referira , em «correspondência de Fradique Mendes», ao triunfo de um movimento religioso na Pérsia, chamado «babismo». Por diversas vezes, a PIDE interrompeu as reuniões da comunidade, confiscando livros de orações e documentos internos. Alguns dos seus membros tiveram mesmo de responder na sede daquela polícia. Mário Marques, actual director dos Assuntos Externos, foi um dos crentes que, por diversas vezes, foram inquiridos pelos agentes da polícia política do Estado Novo.

(fim)

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